A OBSESSÃO POR UM CORPO CADA VEZ MAIS MAGRO

27/12/2009

 

O manequim das passarelas passa de 38 para 34 e mulheres comuns sofrem a pressão por um corpo cada vez mais magro. Até quando? Por Guenia Winitzi

Na adolescência, meu pior castigo eram os Jogos Abertos do Interior, clássico esportivo que reunia dezenas de equipes de todo o estado. Meus ossos, devidamente expostos em shorts ballonê, com elástico nas pernas (horror que hoje volta em versão light), já eram conhecidos nas quadras de vôlei de minha cidade. Mas os jogos significavam exposição intermunicipal, e ossos à mostra, na época, eram tudo menos sexy ou glamurosos.  As musas de então não eram famélicas. E mulher gostosa era gostosa e ponto.

Portanto, cada jogo exigia um ritual: eu vestia três shorts, um sobre o outro, até atingir o que considerava os quilos fake necessários a um quadril de gente grande. Hoje, enquanto luto com os três quilos que vão e voltam, confesso a mais pura nostalgia pelo peso de outrora e por um tempo em que, ao elogiar os amigos, jamais passaria pela minha cabeça o bordão insidioso que marcou as últimas duas décadas : "Querida, como você emagreceu!".

Tento me policiar, mas virou um cacoete. Volta e meia ataco com o cumprimento policialesco, que parece diminuir a dimensão de qualquer ser humano a uma mera questão de peso. Mal pronuncio a frase e sinto vontade de me estapear. Li Kafka aos 12 anos, Sthendal aos 13: como fui cair na armadilha emocional que exige o peso certo para justificar quem sou? Claro, "todo homem é um produto do meio", e tentar descobrir quando essa obsessão pela magreza começou é trabalho para a antropologia social. De qualquer forma, arrisco dizer que a inglesinha Lesley Hornby, mais conhecida como Twiggy (e várias vezes barrada no começo da carreira pelo porte inexpressivo), foi a precursora das gamines tão em voga neste 2007: moças magras, com jeito de moleque, geralmente de cabelos curtos. Era a década de 60, tempo também de Jean Shrimpton, a quem a memória parece encher de curvas, em contraste com Twiggy, mas cujas fotos nos arquivos virtuais mostram uma figura longilínea sem uma grama a mais sobre os ossos.

Se as magrelas já enchiam as páginas das revistas, quem, no entanto, povoava o imaginário de homens e mulheres eram figuras bem mais robustas: seios e curvas pareciam explodir nas telas quando Sophia Loren e Gina Lollobrigida entravam no circuito.  Brigitte Bardot, alçada a condição de deusa no final dos anos 50, embora sem toda essa exuberância da carne, seguia o mesmo figurino, trazendo, porém, certa modernidade que parecia se sobrepor à época. Sem falar em Marilyn Monroe. O resultado da diversidade é que nós, mulheres normais, podíamos optar por qual modelito seguir, sem exagerar na idolatria das deusas. A questão é: quando foi que os modelos de beleza começaram a ser destrutivos? Essa pergunta não é minha, e sim de Katie Ford, cuja família comanda há 50 anos a Ford Models. Ela foi parar recentemente nas páginas do jornal USA Today, na esteira do debate sobre o look "refugiada africana" que cresce em ritmo acelerado nas passarelas e nas ruas, pautado, sobretudo, pelas mortes da modelo brasileira Ana Carolina Reston, em novembro, e das irmãs uruguaias Eliana e Luisel Ramos, em agosto de 2006 e fevereiro deste ano. Katie descarta, entretanto, a idéia de que as modelos, e por tabela os estilistas, sejam os culpados pela cultura da magreza. "As fontes são inúmeras e é impossível atribuir culpa à indústria da moda, a filmes, tevê ou revistas", afirmou.

A russa Natalia Vodianova foi uma das poucas tops que quebrou o pacto de silêncio que se instaurou no meio logo após a morte de Luisel e Ana Carolina ao comentar abertamente o assunto, em entrevista à Vogue americana. "Modelos falam sem parar de dieta e, quando escuto histórias de meninas que morrem de anorexia, reconheço-as. Em casa somos princesas mas, quando viramos profissionais, tudo passa a girar em torno do peso. Se você se permite comer algo, fica nervosa pensando que as roupas não vão servir. Aí, nas férias, você exagera e come demais porque está faminta. Conclusão: a relação normal com a comida já era." Para piorar a situação, conta Natália, quando uma modelo discute seus problemas alimentares em público, acaba perdendo trabalhos: "Uma top precisa passar sempre uma imagem de alegria e saúde", explica.

Mais dramático ainda, David Bonnouvrier, da DNA Models, foi taxativo em entrevista a Eric Wilson, do The New York Times: "Estamos a minutos de uma catástrofe", Ele apontou um dedo acusador, sem distinções, a bookers e a designers por encorajarem a magreza extrema e difundirem a idéia de que as roupas vestem melhor as mulheres que são pele e osso. Alimentando ainda mais o debate, veio à tona, durante a Semana de Moda de Madri, a decisão de banir modelos size zero das passarelas.

"Size o quê?", perguntou-se a mídia. O termo, desconhecido até cerca de dois ou três anos, gerou outra onda de reportagens. Na verdade, o tal do size zero (tamanho zero) é o menor tamanho à venda nos Estados Unidos. Só entra em mulheres com 58 de cintura e 87 cm de quadris (medidas, dizem, da magérrima Victoria Beckham). Equivale, grosso modo, ao 34 brasileiro.

A princípio, o tamanho diminuto entrou nas grades de produção da indústria fashion para atender a demanda de mulheres muito pequenas e magras por natureza, além do contigente de asiáticas que até então encontrava roupas apenas na seção infantil das lojas. Portanto, a indústria não resolveu induzir à fome milhões que não se enquadram no shape, mas isso, por tabela, acabou acontecendo.

Antes de arrancarmos os cabelos, entretanto, é bom prestar atenção num detalhe: nem sempre a etiqueta "zero" indica uma roupa realmente minúscula. A estilista Nicole Miller destrói qualquer conclusão pouco científica sobre uma epidemia de anorexia afirmando que as marcas, na verdade, estão criando um novo padrão de modelagem, uma espécie de vanity sizing, (numa tradução livre, tamanho-vaidade). A etiqueta marca 34 (ou zero), mas o modelo é exatamente igual ao 38 (ou 4) de outros tempos. Uma mentirinha que massageia o ego das mais sensíveis.

Há outros pontos de vista sobre a magreza. O professor Georges Vigarello, da Universidade de Paris-V, defende no livro História da Beleza (Ediouro 368 páginas 45 reais) que a obsessão atual pelo pouco peso não é conseqüência, apenas, da indústria da moda nem de hollywood. "Há mil e um artigos médicos que sugerem que corpos mais magros são mais ativos e funcionais", escreve Vigarello. É esse pressuposto científico, diz ele, que transformou a magreza numa meta coletiva que beira a histeria, uma paranoia generalizada. (Adorei! A tese de Vigarello é quase uma desculpa intelectual para o que venho fazendo...)

Mais importante que ser magra, entretanto, é ser saudável - e acho que ninguém discorda disso. Portanto, é preciso definir até onde a magreza é uma coisa louvável e quando ela se torna um problema. A resposta pode vir, quem diria, da moda. Embora o tamanho padrão dos vestidos utilizados nos desfiles seja 34, há um movimento para criar mostruários tamanho 36 e 38. Parece pouco, mas já é um começo. (Vogue Brasil, maio/2007, pág. 266-268).

 

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