A LÍNGUA BRASILEIRA

 

"Menas", por favor!

Em confronto com as regras da norma culta, duas gramáticas e uma exposição defendem o modo brasileiro de falar.

Mariana Shirai

 

A gente vamos falar errado menas vezes. Por mais estranheza que provoque hoje, essa frase poderá ser considerada uma maneira culta de usar a língua... no ano de 2210.  Nem estaremos nos comunicando em português, mas sim em língua brasileira. Essas algumas projeções feitas pelo linguista Ataliba Teixeira de Castilho, professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e estudioso da área há mais de cinco décadas.  'Acho que em 200 anos teremos uma língua brasileira, totalmente diferente do português europeu e do africano", diz ele.  'Só não posso garantir, porque a linguística não é uma ciência do futuro, mas do presente e do passado.'

Castilho é autor de uma das duas gramáticas do português do Brasil que acabam de chegar às livrarias.

Os livros, somandos a uma exposição em São Paulo sobre as diferentes maneiras de falar do brasileiro, são uma tentativa de valorizar os desvios da norma culta praticados no país. Eles questionam a ideia de que haja uma maneira certa e outra errada de falar.

 

O futuro imaginado por Castilho pode parecer nada 'haver', mas se baseia em teorias fundamentadas. O professor esteve entre os acadêmicos que iniciaram o estudo da linguística (ciência que trata da linguagem verbal humana) no Brasil, na década de 70.  De lá para cá, participou da criação de relevantes trabalhos da área, como a Gramática do português falado, primeiro estudo do gênero entre as línguas romanas, Para a história do português brasileiro e A linguagem falada culta na cidade de São Paulo.

Ele se apoiou no conhecimento acumulado para escrever a recém-lançada NOVA GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO (contexto, 768 páginas, R$69,90).

A Obra não é o tipo de gramática com a qual estamos acostumados.  'Não estou preocupado com o certo ou o errado', afirma Castilho (leia a entrevista à página 150). 'Fiz um retrato da língua como ela é falada no Brasil, com suas variedades.'  isso quer dizer que o livro não deve ser usado como uma referência de como falar ou escrever dentro da norma culta - o conjunto de regras usadas pelos falantes cultos, descritas em gramáticas tradicionais.  Ele mapeia os diferentes jeitos de usar a língua, incluindo aí formas que seriam consideradas erros pelos mais conservadores.  Castilho analisa expressões como 'ni mim', 'tafalano no telefone', e quem que chegou?' a partir da constatação de que são fenômenos da língua, deixando as regras de lado.

Também na trilha de identificar uma língua brasileira, o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Mário Alberto perini acaba de lançar GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO (Parábola Editorial, 368 páginas, R$50).  Mais concisa, a obra é a adaptação de outra gramática dele, a Modern Porguguese: a referentece grammar, escrita com o intuito de ensinar estrangeiros a falar o português brasileiro.

'O português do Brasil (e não o europeu) é usado por 190 milhões de pessoas, é a oitava língua mais falada no mundo', diz.  'O fato de ele nunca ter sido organizado em forma de gramática é uma situação anômala, que mexe com nossos brios.'

Castilho concorda. 'O futuro da língua portuguesa repousa no Brasil.'  O lançamento das duas gramáticas é também relevante para o momento atual do país.  'Tudo na linguagem é uma questão política. O país está numa fase interessantíssima.'  Tentativas de unificar a língua, como o recente Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, podem ser vistas como um movimento oposto ao natural distanciamento e dominância do português falado no Brasil e relação às variantes europeias e africanas.

As iniciativas que valorizam o falar brasileiro não estão apenas nos livros.  Em São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa apresenta, até 27 de junho, a exposição MENAS: O CERTO DO ERRADO, O ERRADO DO CERTO, com curadoria de Castilho e do professor de cursinho Eduardo Calbucci.  É a primeira exposição do museu - um dos mais visitados do país - que trata da língua portuguesa. As outras mostras abordaram a obra de escritores, como Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Os 420 metros quadrados do 1º andar da instituição foram cobertos por instalações multimídias, jogos interativos e vídeos que tratam exatamente dos desvios da norma padrão praticados pelo brasileiro na fala, na escrita cotidiana, na literatura e na música. 'Queremos mostrar que o bom falante é aquele que sabe escolher a variedade linguística de acordo com a situação', afirma Calbucci.

A exposição aborda com sucesso a ideia de que não há maneria errada de usar a língua. Logo no início, o visitante depara com frases como 'Se alguém usou uma palavra, ela existe' e 'A língua varia no tempo e no espaço'.  Visitada principalmente por grupos de crianças em fase escolar, a exposição pode ser um problema, caso não haja orientação correta. Mesmo que sem intenção, ela valoriza os desvios em detrimento da norma culta.  'Não é uma boa iniciativa, diz o professor Evanildo Bechara, o mais importante gramático do Brasil.  'É como dizer: 'Se todo mundo está usando o crack, por que eu não vou usar?'.

Se o aluno aprende a língua que ele já sabe, ou a escola está errada, ou o aluno precisa da escola."

O mérito da exposição e das gramáticas de Ataliba e de Perini está em divulgar uma ideia simples e ainda pouco compreendida: a língua está com constante mutação.  Por isso, não deve ser avaliada apenas a partir da norma culta.

O que hoje é visto como erro pode ser abraçado pelo padrão amanhã.

 

Ataliba T. de Castilho: A língua sem Photoshop

O linguista conta como fez sua gramática registrando a fala espontânea

Redação Época

 ÉPOCA – Como foi feita a pesquisa que deu origem a sua gramática?

Ataliba de Castilho – Fui acumulando esse conhecimento durante meus 50 anos de magistério. Li toda a produção brasileira dos últimos 30 anos sobre o assunto, boa parte dela com minha participação. Estava na hora de colocar tudo isso na forma de gramática, um tipo de texto que as pessoas já sabem do que se trata. O livro é o resultado da leitura e da interpretação desses trabalhos.

 ÉPOCA – Na prática, como ela deve ser usada?

Castilho – É para o estudo nos cursos de letras e também para o ensino médio. A novidade desse texto é que ele convida as pessoas a pensar. O estilo normal das gramáticas é como o de Moisés quando faz revelações ao povo. Quis fazer um texto mais argumentativo. Exponho dados, faço análises sobre eles e depois questiono o leitor: “Que tal analisar esse fato de outro jeito?”.

 ÉPOCA – Quais são as diferenças entre sua gramática e as gramáticas comuns?

Castilho – É uma questão de ênfase. O gramático visa a ensinar as pessoas a evitar o erro, a praticar o português correto. A minha não é desse tipo. Retrato o português do Brasil, é um registro de como se fala aqui. Não estou preocupado com o certo ou o errado. Quero mostrar como a língua é, com suas variedades. É a língua sem o Photoshop, que se distancia da norma padrão.

 ÉPOCA – Essa não é uma questão mais política do que linguística?

Castilho – Tudo na linguagem é política. O futuro da língua portuguesa repousa no Brasil. Os estrangeiros querem aprender o português do Brasil, porque é conosco que eles fazem comércio.

 ÉPOCA – De que maneira usar a gramática no ensino médio se ela se distancia da norma culta?

Castilho – Quero um novo modo de fazer gramática e de fazer ciência no Brasil. Desde que comecei a lecionar, aos 22 anos, esse é meu desejo. O ensino de hoje se fundamenta no certo e no errado. Mas isso não tem dado resultado. A avaliação de que “menas” está errado é algo de hoje, não necessariamente de amanhã. Na sala de aula, é preciso que se reflita sobre a língua, e não ensinar o português – isso o aluno já sabe. Se o aluno que domina a variante popular voltar para o ambiente familiar falando a norma culta, haverá uma ruptura da identidade linguística. Ao expor as possibilidades de fala, explicando onde e quando se deve usar cada uma, o aluno vai ser um bilíngue em sua própria língua.

Meu pai era lavrador e minha mãe professora primária. Até os 6 anos morei na roça. Meu avô tinha uma fazenda e mandou contruir uma escola onde minha mãe trabalhava. De tempos em tempos vinha um inspetor escolar para saber se o ensino estava sendo passado de maneira correta. E ela falava “nós faremos isso no próximo semestre”, “nós fizemos tal”. Eu eu pensava, o que é isso? No dia-a-dia falávamos "a gente", e não nós. Naquele momento, minha mãe falava de um modo tão estranho que eu achava que ela não era mais da nossa família. Ela não era doida, falava com o inspetor na língua do inpetor. Mas ali na roça, para falar com a família, a língua era outra.

 ÉPOCA – Um dia teremos uma língua brasileira?

Castilho – Acho que sim, inevitavelmente. Eu diria que em 200 anos, muito mais pelo afastamento do português europeu do que pelo afastamento do português brasileiro. No século XVIII, os portugueses ingressaram num novo ritmo de pronúncia das palavras. Passaram a engolir as vogais muito mais do que aqui. Eles se afastam cada vez mais, e ninguém sabe a razão disso.

 ÉPOCA – A internet muda a língua?

Castilho – A escrita vai se marcar pelas propriedades do meio. Isso não é espantoso. Quando Gutenberg inventou a imprensa de tipos móveis, no século XVI, a tecnologia da escrita mudou radicalmente. Desapareceu o escriba, a pessoa treinada na grafia manual. Agora vem outra mudança, com a rapidez das abreviaturas. Não adianta olhar com receio. O lado vantajoso é que os jovens estão escrevendo muito mais.

 ÉPOCA – Não é uma contradição fazer uma gramática que não é para referência?

Castilho – É um trabalho paradoxal, eu tenho consciência disso. É uma gramática, mas não é normativa. É discritiva, mas é reflexiva também. Eu dou a minha opinião, mas provoco quem lê a dar a sua. É um lance meio calvinista, eu tenho uma formação protestante presbiteriana. Nela, se você quiser falar com Deus, não precisa de um despachante, de um pastor, de um padre ou de um imagem. Você fala diretamente com Ele. É o mesmo para os muçulmanos. Eu trouxe isso para a gramática. Se você precisar saber o português, estuda você mesmo. Com ela, você terá uma orientação: o que está na minha gramática é o que o povo das letras pensou sobre o assunto nestes anos todos.

 ÉPOCA – Quais são as outras diferenças entre a sua gramática e as normativas?

Castilho – Ela começa pelo texto, e não pela sentença. Houve um grande avanço nos últimos anos no estudo do texto. E quando você conversa, você está produzindo um texto. Se eu começar pela sentença, estou começando pela metade. As gramáticas tratam do som, da palavra e da sentença. Mas a língua não é só som, palavra e sentença. É muito mais complicado do que isso, procurei enfrentar essa complexidade natural das letras. Isso está governando o nosso modo de produzir sentenças e de escolher as palavras e de produzir os sons.

 ÉPOCA – Por que o português do Brasil se distanciou tanto da sua origem?

Castilho – O português que os portugueses trouxeram para cá com toda certeza é esse que falamos hoje. Conservamos o ritmo espaçado, o chamado português médio, última fase do português arcaico. Os portugueses vieram para cá em 1932 e começaram a colonizar o Brasil por São Vicente, depois vieram para Santo André, São Paulo e aí vieram os bandeirantes, espalhando a língua por aí. Os colonos do Brasil falavam muito como nós falamos. Os protugueses mudaram do XVIII para frente, tomaram outro rumo. Nós mudamos também.

 ÉPOCA – A unificação do Acordo Ortográfico não vai um pouco contra o que o senhor estuda?

Castilho – Seria se a gente desconsiderasse as variantes. Ela admitiu as duas grafias, foi uma coisa equilibrada. Se você pensar bem, quanto menos sinais tiver, não é melhor?

(Época, 19/04/2010)

 

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