"Drogas: meu bem, meu mal
A maconha, a cocaína e o LSD estão hoje no centro do crime organizado. Mas
já
foram recomendados por médicos e considerados sinônimo de elegância
por Heitor Pitombo
Há 21 anos, o pesqueiro panamenho Solana Star, perseguido pela Polícia Federal,
despejou 22 toneladas de maconha no litoral brasileiro. Durante meses, as praias
do Sul e Sudeste foram invadidas por gente que pescava enlouquecidamente um
exemplar que fosse da droga, acondicionada em latas de alumínio. Assim como no
período conhecido como "verão da lata", os primeiros carregamentos de Cannabis
chegaram ao Brasil por mar. Embarcadas em caravelas portuguesas, em 1549, as
mudas foram trazidas por escravos e marinheiros apresentados a elas na Índia. Agora, um século após o primeiro acordo internacional contra drogas, um encontro
da ONU, em Viena, vai rever a lista de substâncias proibidas em todo o mundo.
A maconha faz parte. Mas nem sempre foi assim. No Brasil do século 16, fumava-se
o bangue. Esse cânhamo, subproduto da planta, servia para fazer tecidos de
velas, um mercado aquecido na era das navegações e que despertou o interesse da
coroa portuguesa pela Cannabis. E os colonos trataram de espalhar sementes da
erva por todo o território. Em 1785, o vice-rei Luiz de Vasconcellos e Souza
enviou a São Paulo um ofício (com 16 sacas de sementes e um manual de cultivo),
pedindo encarecidamente aos agricultores que plantassem maconha.
No século 19,
ela vira remédio, como se vê na propaganda mais antiga de maconha, feita pela Grimault e Cia., de Paris, em 1885 (ao lado). Encontrada pelo pesquisador Guido
Fonseca, apregoava efeitos terapêuticos dos cigarros índios, à base de Cannabis
indica, uma variedade da erva.
Cachimbo de pobre
O uso entre ex-escravos estigmatizou o hábito entre os brancos
Com a abolição da escravidão, em 1888, os negros ganharam autonomia, mas
continuaram a sofrer com desqualificação social. A capoeira foi proibida no ano
seguinte à Lei Áurea, e, em 1890, o governo da República criou a Seção de
Entorpecentes Tóxicos e Mistificação, para impedir o denominado "baixo
espiritismo". Ou seja, o uso da maconha em rituais de origem africana, como o
candomblé. À medida que se enraizava nas tradições populares, entre ex-escravos,
índios e repentistas do Nordeste, aumentava a repressão ao consumo. A primeira
lei restritiva é de 1830, quando a "venda e o uso do pito de pango" (cachimbo de
barro para maconha) foram proibidos no Rio de Janeiro - três dias de cadeia para
o negro que pitasse. Textos de cunho racista, de 1916, passaram a defender a
tese de que a Cannabis levava negros e nordestinos ao crime. Um dos propagadores
dessa teoria foi o médico Rodrigues Dória: "Um indivíduo já propenso ao crime,
pelo efeito exercido pela droga, privado de inibições e de controle normal, com
o juízo deformado, leva à prática seus projetos criminosos". Vários médicos com ideias de pureza racial temiam que o uso da maconha contaminasse os cidadãos
brancos. Assim, a partir de 1917, a receita médica passou a ser obrigatória para
comprar a Cannabis. E, em 1932, ela entrou na lista de substâncias proscritas. O
Estado Novo de Getúlio Vargas institucionalizou a repressão e estabeleceu pena
de prisão para os usuários. O governo também negociou com os fiéis do candomblé
a retirada da maconha dos cultos, em troca da legalização da religião.
Pó de rico Ele veio com a modernização, na busca louca pela euforia
Bem menos popular, a cocaína também passou de remédio à posição de droga
criminalizada e antissocial, embora se saiba que o pó circula hoje ferozmente
pela classe média brasileira. Ela surgiu como analgésico
e começou a ser
consumida no Brasil em meados dos anos de 1910. Laboratórios como o Grimault
indicavam o vinho de coca para "pessoas fracas" e "jovens pálidas e delicadas".
Há registros de consumo da folha de coca de mais de 1200 anos na América do Sul.
E seu chá era vendido no século 19 na Europa e na América do Norte. Mas
seu
princípio ativo, a cocaína, só foi isolado em 1860, pelo químico alemão Albert Niemann. E, em pouco tempo, revelou efeitos colaterais, como arritmias
cardíacas, problemas respiratórios e neurológicos. Por isso, lei de 1882 exigiu,
no Brasil, receita médica na compra de pó. Mas o século 20 disseminou o consumo,
recomendado até pelo pai da psicanálise, Sigmund Freud. Em 1914, o jornal O
Estado de S. Paulo advertia: "Há hoje em nossa cidade muitos filhos de família,
cujo grande prazer é tomar cocaína e deixar-se arrastar até aos declives mais
perigosos deste vício. Quando atentam... é tarde demais para um recuo". Três
anos depois, o Código Sanitário determinou o fechamento das farmácias (que eram,
com os bordéis, os maiores distribuidores da droga) que vendessem cocaína sem
receita. Para a pesquisadora Beatriz Rezende, organizadora do livro Cocaína:
Literatura e Outros Companheiros de Ilusão, o Brasil respirava os ares da
Primeira República, e "o entusiasmo pela modernização vai fazer com que a ideia
de decadência de costumes frequentemente ligada ao ópio e ao haxixe seja
substituída pela ambição da euforia encontrada no éter e na cocaína". Era usada
por poetas e outras artistas. Na crônica A Favela (1922), Orestes Barbosa
escreveu que, nos morros cariocas, traficantes vendiam a droga "malhada"
(misturada a outras substâncias). E no samba A Cocaína (1923), de Sinhô, surgem
sinais de alerta: "Mais que a flor purpurina é o vício arrogante de tomar
cocaína. Quando estou cabisbaixa chorando sentida, bem entristecida, é que o
vício da vida deixa a alma perdida. Sou capaz de roubar, mesmo estrangular, para
o vício afogar." Até que, em 1938, decreto-lei proibiu nacionalmente a cocaína,
mesmo para fins médicos.
O dia da bicicleta
Os anos 60 e 70 viveram o desbunde psicodélico e o fortalecimento do tráfico
Nos anos 60, o movimento hippie e a contracultura deram às drogas status de
experiência libertária. Acaba o estigma da maconha como "droga de pobre" e o LSD
(dietilamina do ácido lisérgico) entra na moda. Ele foi sintetizado a partir de
um fungo do centeio em 1938, pelo suíço Albert Hofmann, nos laboratórios Sandoz.
Mas só em 1943 o cientista descobriu seus efeitos psicoativos, ao absorver na
pele uma pequena quantidade da substância. Foi no dia 19 de abril, conhecido
como o "dia da bicicleta", quando ele experimentou delírios caleidoscópicos ao
pedalar até em casa. O LSD teria surgido das pesquisas da CIA para criar armas
de controle mental e foi aplicado na psiquiatria. Mas ganhou fama entre os anos
60 e 70. O cantor Tim Maia, após viagem a Londres, nos anos 70, foi visitar a
Philips (sua gravadora na época) para oferecer ácido a todos: "Isto aqui é um
LSD, que vai abrir sua cabeça, melhorar a sua vida, fazer de você uma pessoa
feliz", conta o jornalista Nelson Motta, no livro Vale Tudo - O Som e a Fúria de Tim Maia. Também nessa época, o tráfico começou a se profissionalizar. No
presídio da ilha Grande (RJ), militantes políticos e presos comuns trocaram
experiências sobre táticas de luta, o que teria contribuído para a criação das
atuais facções do narcotráfico. Desde então, o Brasil viu o avanço do ecstasy, a
droga das raves da classe média, e do crack, a pedra dos meninos de rua de São
Paulo. Mas a verdade é que, por razões existenciais, religiosas, de mercado ou
de poder, a humanidade nunca deixou de conviver com as drogas.
Combate internacional
As medidas de controle começaram com o ópio, na China
O primeiro acordo internacional sobre drogas é de 1909, após a Comissão do Ópio
de Xangai, e proibiu o ópio, pivô da primeira e da segunda
Guerra do Ópio
(1839-1842 e 1850-1860), entre britânicos e chineses. Os ingleses haviam
introduzido a droga ilegalmente na China para pressionar pela compra de produtos
ocidentais. Mas a Convenção de Drogas e Narcóticos das Nações Unidas, de 1961,
assinada hoje por todos os países da ONU, foi o primeiro consenso mundial de que
substâncias psicoativas deveriam ser coibidas, por causar dependência e danos à
saúde. Este mês, 100 anos depois do acordo do ópio, acontece a Reunião Especial
sobre Drogas da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Viena.
Saiba mais:
LIVROS
Pequena Enciclopédia da História das Drogas e Bebidas: Histórias e Curiosidades
sobre as Mais Variadas Drogas e Bebidas, Henrique Carneiro, Campus/Elsevier,
2005
Cerca de 140 verbetes sobre diferentes substâncias psicoativas, enfocando seu
significado cultural e simbólico ao longo da História.
Cocaína: Literatura e Outros Companheiros de Ilusão, Beatriz Rezende (org.),
Casa da Palavra, 2006
Textos literários que mostram a evolução do pó da inspiração boêmia às páginas
policiais.
SITE
www.neip.info/
Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos, reúne pesquisadores de
vários centros universitários, teses e bibliografia sobre o tema.
<http://historia.abril.com.br/comportamento/drogas-meu-bem-meu-mal-480695.shtml>
A história das drogas, assim como a da
religião, ilustra bem como, embora a ciência tenha desmistificado muito
dos enganos do passado, uma grande parcela da humanidade ainda se mantém
agarrada aos equívocos primitivos como se aquilo fosse conhecimento.
Inacreditável! Vejam o que disse um revisor do Youtube sobre o vídeo recusando monetização:
Meu feedback enviado:
"Decepcionante a decisão desse revisor.
Eu explico a diferença entre droga e alimento, informando
como a droga danifica a vida do usuário ao torná-lo dependente,
e um revisor conclui que meu conteúdo não é educativo!"
Ao que parece, esse revisor do You Tube
deve ter usado alguma droga. rs