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COMO O TABACO DOMINA AS PESSOAS
Meu
cigarro, minha vida
Para o homem moderno, desligado dos ritos de passagens
primitivos, o cigarro seria uma maneira de estabelecer algum tipo de vínculo
individual e social, só que de uma maneira mais profana e destrutiva
POR CÉLIA LÍDIA DA COSTA
O uso de tabaco
representa a maior causa de doenças já documentada em
toda a história médica até a atualidade. Quando se pensa em tabagismo
e em iniciativas em relação ao seu fim, é importante que o problema da
dependência seja levado em consideração. Esta informação pôde ser veiculada a
duras penas, confrontada constantemente pelas tentativas que as multinacionais
relacionadas ao cigarro mantinham de confundir a opinião pública. A
dependência química ocasionada pela nicotina é comparável à provocada pela
cocaína e mesmo pela heroína, conseqüentemente levando o indivíduo à
síndrome de abstinência, quando descontinua seu padrão de uso regular.
Apesar de
socialmente aceito, ao contrário das citadas drogas ilícitas, o padrão de uso
social e repetitivo do tabaco e da nicotina, acompanhando o fumante
recorrentemente nas mesmas situações, ao longo de anos, insere uma nova
dificuldade à pessoa que tem a intenção de livrar-se do tabagismo: o
condicionamento de seu padrão de uso à rotina diária e aos eventos mais diversos
da vida.
Além destes
difíceis obstáculos em relação às particularidades da dependência provocada pelo
cigarro, a forma com que os indivíduos são "capturados" por seu "algoz" chama a
atenção do observador mais atento. O cigarro não é prazeroso ao iniciante no
hábito. Causa mesmo, em alguns casos, efeitos aversivos, como náusea, dor de
cabeça, tosse e paladar ruim. Estes sintomas cedem com o uso contínuo.
Assim, o "calouro" insiste. Qual seria a explicação? A história do uso de
substâncias psicoativas é tão antiga quanto a própria história da humanidade.
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O uso de tabaco representa a maior causa de
doenças já documentada em toda a história médica. Aqui, a
dependência precisa ser levada em consideração
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RITOS
DE PASSAGEM
Os significados de outrora, encontrados em alicerces culturais,
tradições, crenças religiosas, objetos cerimoniais, são desacreditados. Esse
momento predispõe ao recurso de substâncias, agora com o objetivo de alívio e de
integração. O indivíduo é mais suscetível à fuga pelas drogas do que jamais foi
em toda a sua história anterior. Desprovida de seus ritos de passagem e
iniciação, as sociedades contemporâneas apresentam um padrão de uso de
psicotrópicos, muitas vezes associado a essas fases de transição, marcado por um
caráter destrutivo, descontrolado e profano.
O tabagismo é reconhecidamente a porta de entrada para o
uso de outras drogas pelos adolescentes. "Por fim, fiquei absorvido
pela cultura em torno do cigarro e ao que ela dá margem, pela riqueza notável
dos cigarros como exemplo, tema, tópico ou até mesmo personagem das principais
obras modernas de Filosofia, poesia, ficção e cinema" - diz Klein. Apesar de
toda a atenção dada ao fenômeno do tabagismo pela mídia, governo e autoridades,
é sabido que o uso desta substância, por adolescentes, nos últimos 20 anos nos
Estados Unidos, chega a níveis epidêmicos. Sua sociedade é um exemplo radical de
nossa sociedade contemporânea, em seus valores e expectativas.
"A evidência da
ligação simbólica entre o tabagismo e a liberdade é muito bem ilustrada pelo
fato histórico ocorrido em abril de 1945, na França, quando as mulheres pela
primeira vez na história obtiveram o direito do voto e a certa quantidade de
cigarros" - afirma o autor. O capitalismo, que está na base da organização de
nossa sociedade, traz o apelo ao individualismo em um mundo onde as pessoas cada
vez mais não passam de números e carecem de reconhecimento e da sensação de
serem acolhidas e de pertencerem a um grupo. A busca da individualidade, que é
um apelo da sociedade moderna e que exige que estejamos sós, às vezes pode ser
suportável, mas costuma provocar um desconforto maior.
A necessidade
de "fazer parte", de se acoplar a alguém de forma a recuperar a paz e a
harmonia, é a manifestação do instinto do amor, que surge a partir da separação
inicial da mãe. Pode-se entender que este sentimento está na raiz da experiência
mística, de uma integração com o todo maior, com o universo, com Deus. "O
momento de pegar um cigarro possibilita que se abra um parêntese no tempo, de
atenção intensificada, que origina um sentimento de transcendência, evocado
por meio do ritual do fogo, da fumaça, da brasa, ligando mãos, pulmões,
respiração e boca."
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O cigarro não é prazeroso ao iniciante no
hábito. Causa mesmo, em alguns casos, efeitos aversivos, como
náusea, dor de cabeça, tosse e paladar ruim
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Pode haver, no entanto, a substituição destas figuras de amor, por objetos. O
homem se "apega" ao seu carro, à sua casa, à sua carreira. Esta relação é, em
algum grau, uma forma de dependência, que podemos chamar de psicológica. A
dependência uma vez estabelecida representa risco de sofrimento. "Parando de
fumar, deve-se lamentar a perda de algo na vida ou de alguém imensamente,
intensamente belo, deve entristecer- se pelo desaparecimento de uma estrela."
Pessoas com menor capacidade de lidar com os sentimentos tenderão a transferir
suas afeições a objetos, com os quais terão risco bem menores de sofrimento.
Nossa sociedade capitalista, descrita até agora, estimula o apego a objetos, e a
este tipo de dependência. A fase da adolescência é claramente a mais suscetível
ao antagonismo entre integração e individuação.
Se a sensação
de reconhecimento e de acoplamento vem a partir do respeito do grupo de amigos
que fumam, e se isso passa a ser o fundamental para a manutenção do bem-estar,
então haverá um empenho para se conseguir fumar. Já há a dependência
(psicológica) da sensação de pertencer ao grupo. Este é o componente que
alimenta a necessidade de integração. Por outro lado, a vaidade é responsável
pelos sentimentos mais importantes relacionados à individuação e aos instintos
sexuais. Tende-se a querer repetir todas as vezes possíveis as situações que
tragam a sensação de ser especial e único.
"VÊ-SE
QUE O CIGARRO SUPRE O INDIVÍDUO QUE FUMA DE DUAS NECESSIDADES BÁSICAS:
INTEGRAÇÃO E INDIVIDUAÇÃO"
Quase todas
as propagandas de cigarros traziam a idéia de que você
será uma pessoa especial, atraente, irresistível se fumar. Vê-se que
o cigarro supre o indivíduo que fuma dessas duas necessidades básicas:
integração e individuação É sabido que 90% dos fumantes começam a fumar antes
dos 19 anos de idade. O componente químico da dependência do cigarro não está
sempre presente. Os organismos variam muito em sua relação com as drogas em
geral. Fatores genéticos, características de personalidade, fatores ambientais
estão relacionados. O padrão inicial de uso do cigarro não costuma ser o diário,
o hábito torna-se crônico em etapas mais tardias. Nestas condições iniciais,
dificilmente se estabelecem condições para a dependência química.
Cigarro e cinema
Retratado pelo cinema como um ato nobre e elegante, o cigarro e o ato de
fumar sempre foram componentes |
Alguns estudos
falam de números que chegam ao máximo em 5% dos usuários neste padrão. Entende-
se, então, o papel dos fatores psicológicos descritos como fundamentais para a
evolução do hábito até que, pela manutenção por tempo suficiente, cheguem a
causar dependência química. Os estudos apontam para os primeiros 15 anos como os
mais importantes para que a dependência química evolua. "Segundo Freud, a
satisfação de um desejo resulta na extinção do desejo. Mas os cigarros não
respeitam o Princípio do Prazer de Freud: quanto mais
cedemos à excitação de fumar, mais desperta-se o desejo."
Mulheres, as principais vítimas da dependência
psicológica
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O público feminino é o preferido do cigarro quando
o assunto é dependência psicológica. Levantamento feito pelo Grupo de
Apoio ao Tabagista (GAT) do Hospital A.C. Camargo, destaca que
psicologicamente o tabaco gera nas mulheres efeitos mais intensos e,
portanto, causa dificuldades adicionais para que abandonem o vício. Para
a psiquiatra e coordenadora do GAT, Célia Lídia da Costa, isso ocorre
porque as mulheres são mais sujeitas aos sintomas de depressão e
ansiedade. Problema no trabalho, briga com o namorado ou dificuldade em
educar os filhos são fatores que costumam fazer com que elas fumem mais.
Segundo a pesquisa, cerca de 90% das fumantes
iniciam seu hábito na adolescência, a partir dos 13 anos de idade. Para
Célia, esse começo ocorre por pressão social, imitação do grupo e a
necessidade de pertencer. "No começo as moças fumam com o intuito de
interagir com colegas fumantes. Com o passar do tempo é estabelecido o
hábito, ou seja, elas fumam sempre nas mesmas situações, como se algo só
fosse dar certo graças ao cigarro. Isto é dependência psicológica."
Outro fator que favorece o vício e dificulta o rompimento do hábito de
fumar é o fato de as mulheres acreditarem que vão engordar se pararem de
fumar. "O ganho é relativamente pequeno (cerca de 4 kg), sendo evitável
em caso de tratamento com auxílio de especialista.
O maior problema é que elas não apenas temem
engordar ao cessarem o vício, como também a maioria começa a fumar
por ouvir dizer que este hábito emagrece. Na verdade, quando a
pessoa pára de fumar pode acabar substituindo o efeito do cigarro por
uma maior avidez por comida. Além disso, o cigarro tende a aumentar o
metabolismo do organismo, o que provoca grande gasto de energia, sendo
que na cessação o inverso ocorre."
Célia considera que a principal atitude é a
consciência. Não querer parar de fumar é uma tentativa quase sempre
inconsciente de fugir do desconforto de precisar abandonar uma fonte de
prazer e alívio que o fumante identifica no cigarro. "Cigarro dá prazer
e se não fizesse mal ninguém teria por que parar. Mas a realidade a ser
encarada é que indiscutivelmente faz muito mal.
A escolha é querer ou não se envenenar. Não há como fugir a essa
realidade. No caso de não conseguir sozinho é fundamental procurar
ajuda." São muitos os males causados pelo cigarro à saúde da mulher.
Os primeiros sinais são estéticos e sociais. "Elas ganham de
brinde rugas ao redor da boca e também rouquidão,
tendo a voz invariavelmente confundida com a de homens (o que já é sinal
de efeitos nocivos em cordas vocais).
Provoca também um mau cheiro inconfundível e gera envelhecimento
precoce por alterações microvasculares da pele.
Tudo isso, definitivamente, não pode ser considerado propriamente um kit
de beleza." A relação entre cigarro e mulheres aumenta os riscos de
câncer de pulmão (causador de 98% dos casos)
como também de cânceres de boca, esôfago, laringe,
faringe, garganta, pâncreas, rim, bexiga, estômago e colo de útero.
Outras conseqüências são o aumento da taxa de
infertilidade, alterações menstruais e doenças cardiovasculares. O
diretor do Departamento de Cirurgia Torácica do Hospital A. C. Camargo,
Jefferson Luiz Gross, avisa que os riscos são ampliados quando
o tabaco está associado ao uso de métodos anticoncepcionais.
"Pode também causar problemas na gravidez, interferindo diretamente na
saúde do bebê, que pode nascer com peso abaixo do ideal, pois o tabaco
diminui a chegada de nutrientes pela placenta."
Dependência
psicológica x dependência química - Estudo do GAT
feito com 6 mil pacientes em tratamento conclui que em 50% dos
casos a dependência do cigarro é exclusivamente psicológica, sendo
indicada, nestes casos, a terapia em grupo. Apenas 20% dos pacientes
apresentaram dependência grave de nicotina e 30% são dependentes leves
ou moderados da substância. |
Com o uso
diário do cigarro se estabelecem os padrões comportamentais, associando a
experiência dos efeitos do cigarro às situações diárias do indivíduo.
Automatismos se estabelecem de forma que o uso acontece por associação da
padrões estabelecidos, sem a consciência ou mesmo a escolha do fumante.
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Com o uso diário do cigarro se estabelecem os padrões
comportamentais, associando a experiência dos efeitos do cigarro
às situações diárias do indivíduo
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Após esse
período, os níveis de dependência química tendem a estacionar naqueles
indivíduos atingidos até esse ponto. "Sartre afirma que foi fácil parar de fumar
à medida que descristalizou a experiência ou seja, quando descobriu outras
maneiras de se apossar dos eventos significativos da vida diária: o sabor de um
jantar, o perfume." Apenas metade dos indivíduos que fumam diariamente atinge
alguns níveis de dependência química de nicotina. Quando se pensa em dependência
química grave, suficiente para que os indivíduos apresentem desconforto mais
acentuado, por síndrome de abstinência, esses números podem chegar a apenas 20%
dos casos, segundo alguns estudos.
TRATAMENTOS DISPONÍVEIS
Esses dados importam no sentido de fornecer orientação aos fumantes e manejo
adequado de sua experiência de parar de fumar. Muito do conhecimento atual em
relação à repercussão psicológica do cigarro no momento da cessação e
principalmente desta para que os indivíduos consigam permanecer sem fumar, ainda
permanece obscuro.
As informações em relação aos tratamentos disponíveis se restringem em sua
maioria à dependência química e às possibilidades dos fármacos. Invariavelmente
os fumantes buscam alternativas que resolvam facilmente seu problema em relação
ao cigarro. A dependência química é parte deste processo, para o qual os
recursos disponíveis são eficazes e suficientes.
A relevância
destes dados em relação ao componente psicológico da dependência precisa ser
abordada junto ao fumante e ainda são levados em consideração com pouquíssima
freqüência. Estudos já estabeleceram a associação do tratamento farmacológico à
abordagem psicológica cognitivo-comportamental em grupo, como o tratamento mais
eficaz a ser assumido em programas de cessação. A terapia
cognitivo-comportamental tem base científica sendo passível de reprodução em
experimentos clínicos. Dois princípios básicos desta abordagem, conhecidos por
condicionamento básico e resposta condicionada, vêm do trabalho de Pavlov e
outros fisiologistas russos que estudaram e identificaram os princípios do
aprendizado da resposta animal. Do mesmo modo, o fumante tem em relação ao
cigarro uma "resposta animal", condicionada e não consciente.
Por serem mais
sujeitas aos sintomas de depressão e ansiedade, as mulheres sofrem efeitos
psicológicos mais intensos, gerando dificuldades adicionais para que
abandonem o hábito de fumar. É comum que as mulheres, com sintomas depressivos,
ao tentarem parar de fumar, tenham de tratar a depressão antes de conseguirem
abandonar o cigarro. Essa dificuldade adicional pode fazer que o tratamento para
a cessação seja prolongado.
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1. Epidemiology and
correlates of Daily Smoking and Nicotine Dependence Among Young Adults
in USA. Am J Public Health. 2006, 96(2):299-308.
2. Nicotine Dependence in the USA. Arch gen psych.2001, 58:810-816.
3. Cigarro: Um adeus possível (2006). Flávio Gicovate. MG editores.
4. Auto-Engano (2006). Eduardo Giannetti. Ed Companhia das Letras; São
Paulo.
5. Terapia Cognitivo-comportamental (1997). K. Hawton et al. Martins
Fontes. São Paulo. |
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Célia Lídia da Costa é psiquiatra e coordenadora do Grupo de
Apoio ao
Tabagista (GAT), do Hospital A. C. Camargo.
<http://psiquecienciaevida.uol.com.br/ESPS/Edicoes/37/artigo125600-1.asp>
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