CIGARRO CAUSA A MAIOR DAS DEPENDÊNCIAS
"O cigarro" -
Por: Dr. Drauzio Varella
Adquiri a convicção de que a nicotina causa
a mais devastadora das dependências
químicas. O cigarro é o mais abjeto dos crimes já cometidos pelo capitalismo
internacional. Você acha que exagero, leitor? Compare-o com outros grandes
delitos capitalistas; a escravidão, por exemplo: quantos viveram como escravos?
E quantas crianças, mulheres e homens foram escravizados pela dependência de
nicotina desde que essa praga se espalhou pelo mundo, a partir do início do
século 20?
O primeiro crime foi perpetrado contra algumas centenas de milhares de pessoas;
o segundo contra mais de 1 bilhão.
Na história da humanidade, jamais o interesse financeiro de meia dúzia de grupos
multinacionais disseminou tantas mortes pelos cinco continentes: 5 milhões por
ano -200 mil das quais no Brasil.
Faço essas reflexões por causa de uma série que estamos levando ao ar no
Fantástico, da TV Globo, com o objetivo de dar força aos que pretendem parar de
fumar. Para escolher os personagens, pedimos aos espectadores que nos enviassem
vídeos explicando por que razões pediam ajuda para livrar-se do cigarro.
As cenas são dramáticas. Mulheres e homens de todas as idades que se confessam
pusilânimes diante do vício, incapazes de resistir às crises de abstinência que
se repetem a cada vinte minutos. Mães e pais cheios de remorsos por continuar
fumando apesar do apelo dos filhos; avós que se envergonham do exemplo deixado
para os netos; doentes graves que definham a caminho da morte sem conseguir
abandonar o agente causador de seus males.
Em 22 anos nas cadeias, adquiri a convicção de que a nicotina causa a mais
devastadora das dependências químicas. Largar da maconha, da cocaína e até do
crack é muito mais fácil: basta afastar o dependente da droga, da companhia dos
usuários e dos locais de consumo. Em contrapartida, a vontade de fumar é
onipresente; mesmo sozinho, num quarto escuro, o corpo abstinente suplica por
uma dose de nicotina.
No antigo Carandiru, vi destrancar a porta de uma solitária, na qual um homem
havia cumprido trinta dias de castigo. Com as mãos a proteger os olhos ofuscados
pela luz repentina, dirigiu-se ao carcereiro que acabava de libertá-lo: "me dá
um cigarro pelo amor de Deus".
Cerca de 75% dos fumantes se tornam dependentes antes dos 18 anos; muitos o
fazem aos 12 ou 13, e até antes. Somente 5% começam a fumar depois dos 25. Por
esse motivo, a Organização Mundial da Saúde classifica o tabagismo no grupo das
doenças pediátricas. Conhecedores das estatísticas, os fabricantes fazem de tudo
para aliciar as crianças. Quando tinham acesso irrestrito ao rádio e à TV,
associavam o cigarro à liberdade, ao charme, ao sucesso profissional e à
rebeldia da adolescência.
Hoje, espalham pontos de vendas junto às escolas, com os maços coloridos
expostos ao lado de balas e chocolates nas padarias e das revistas infantis nas
bancas de jornal. Por que razão brigam tanto para patrocinar shows de rock e
corridas de Fórmula 1? Seria simplesmente para aprimorar o gosto musical e
incentivar práticas esportivas entre os jovens? Que motivos teriam para opor-se
visceralmente à Anvisa, quando pretende proibi-los de acrescentar substâncias
químicas que conferem ao cigarro sabores de chocolate, maçã, menta ou cereja?
Existiria outra explicação que não a de torná-lo menos repulsivo ao paladar
infantil?
Qualquer tentativa de conter a epidemia de fumo através da legislação é
combatida com as estratégias mais covardes por lobistas, deputados e senadores a
serviço da indústria. Na contramão do que deseja a sociedade, pressionam até
contra a lei que proíbe fumar em bares e restaurantes.
O que esses senhores ganham com essa conduta criminosa? Estariam apenas
interessados no destino das 180 mil famílias que trabalham nas plantações ou nas
doações dos fabricantes?
Nós temos o dever de impedir o crime continuado que a indústria do fumo pratica
impunemente contra as crianças brasileiras. Fumar não pode ser encarado como um
simples hábito adquirido na puberdade. Hábito é escovar os dentes antes de
dormir ou colocar a carteira no mesmo bolso. O cigarro deve ser tratado como o
que de fato é: um dispositivo para administrar nicotina, a droga que provoca a
mais torturante das dependências químicas conhecidas pelo homem.
Ver também UM
CRIME CONTRA A SAÚDE PÚBLICA