O NASCIMENTO DO MUNDO 
19/10/2004 - 10:07

 (Carlos Luiz de Jesus Pompe)


O mundo, no próximo dia 23, faz aniversário. Pelo menos para quem acredita na data indicada por James Ussher (1581-1656), arcebispo de Armagh e Primaz de Toda Irlanda. Segundo seus cálculos, o momento da criação do mundo ocorreu às 14h30 de um domingo, 23 de outubro de 4004 antes de Cristo (a.C.). Ele chegou a esse momento preciso correlacionando histórias do Oriente Médio e mediterrâneas com os relatos do Velho Testamento, listando as seguidas gerações mencionadas desde Adão e Eva, somando os seis dias da criação e o dia de descanso, os 130 anos da vida de Adão antes de engendrar seu terceiro filho Set, os 105 anos antes que este gerasse seu filho Enós e assim por diante. Seu contemporâneo e amigo, dr. John Lightfoot, da Universidade de Cambridge, deu continuidade ao cômputo, concluindo que "céu e terra, centro e circunferência foram criados juntos, no mesmo instante, com nuvens cheias de água".

Nos seus "Os Anais do Velho Testamento Deduzidos do Princípio da Origem do Mundo", de 1658, o arcebispo Ussher também estimou que Adão e Eva foram expulsos do Eden numa segunda-feira, 10 de novembro de 4004 a. C. (não tiveram um mês sequer de vida paradisíaca), e que a Arca de Noé pousou no monte Ararat no dia 4 de maio de 2348 a. C. - uma quarta-feira. Alguém teria ousado inquirir ao religioso: "O que é que Deus estava fazendo antes de criar o universo?" Furioso, o calculista Ussher redargüiu: "Criando o inferno para os que fazem perguntas como essa!".

O zelo do arcebispo não foi fruto do ócio. Ele pretendia contrapor a majestade de Deus à idéia aristotélica de o Criador ser um mero movimentador de matéria eterna, pois "Aristóteles retira de Deus a glória de Sua criação, e ainda não Lhe consigna nenhuma tarefa a mais além da movimentação das esferas, às quais ele O prende mais como servo do que como Senhor" (note-se que, mesmo hoje, o pensamento de Aristóteles também tem alguma ressonância entre cientistas que afirmam que, "depois do primeiro impulso", Deus não teve muito mais o que fazer).

O conhecimento humano se dá através da investigação, experimentação e dedução - tendo por critério supremo a atividade prática. O desenvolvimento tecnológico, em conjunto com o acúmulo de informações precedentes, possibilita o aprofundamento do saber. A ciência investiga processos, e não coisas ou fatos isolados; supera e complementa as conclusões anteriores; analisa os elementos em seu dinamismo e busca compreender suas relações dialéticas. As conclusões científicas são novamente submetidas ao critério da prática, à experiência, aos novos conhecimentos adquiridos.

Este processo deitou por terra os esforços do arcebispo e seus companheiros. Atualmente, as pessoas mais informadas riem da idéia de que o mundo completará apenas 6008 anos no dia 23. O processo científico é árduo. Um processo não só de conhecimento, de rigor no tratamento da realidade, mas também de enfrentamento dos inimigos do saber que, ancorados em crendices e no poder político, perseguiam e proibiam (ainda perseguem e proíbem) o avanço dos estudos, como é notório na discussão atual sobre pesquisas sobre células-tronco.

Hoje se sabe que, à noite, cerca de 5 mil estrelas são visíveis a olho nu. Os astrônomos concluíram que existem cerca de 100 bilhões de galáxias distintas no universo, cada uma com uma média de 100 bilhões de estrelas. Das galáxias conhecidas, a mais distante da Terra é 4C31.17, que está a aproximadamente 14 bilhões de anos-luz (viajando a 300 mil km por segundo - 9,46 trilhões km/ano, na velocidade da luz-, serão necessários quase 14 bilhões de anos para alcançá-la).

Valendo-se do que há de mais avançado na tecnologia e nos conhecimentos acumulados, a agência espacial norte-americana, Nasa, divulgou, dia 11 de fevereiro de 2003, fotos dos primeiros instantes do cosmos, tiradas pela sonda Wilkinson Microwave Anisotropy Probe (WMAP), que indicam que nosso universo tem cerca de 13,7 trilhões de anos de idade e está composto de somente 4% de átomos de matéria. As fotos mostram flutuações de temperaturas, indicadas como diferenças de cor, que correspondem às sementes daquilo que cresceu para se transformar nas galáxias.

"Graças a esta foto, seremos capazes de descrever o universo com uma precisão sem precedentes", disse Charles Bennett, chefe da missão do WMAP, lançada em 30 de junho de 2001. Esses dados corroboram com os estudos geológicos envolvendo a existência da Terra e de outros planetas, assim como o que se apurou sobre a origem e datação dos seres vivos.

Em órbita a 1,5 milhão de quilômetros da Terra, a sonda mede as flutuações de temperatura (anisotropias) presentes no cosmos 400 milhões anos depois do Big-Bang, a grande explosão que deu origem ao universo. Desta explosão se conserva um "fundo difuso cosmológico", uma forma de irradiação de microondas a uma temperatura que beira -270 ºC. Essa irradiação fóssil foi captada pela sonda. A imagem da WMAP tem uma margem de erro surpreendentemente pequena de 1%. "Estes dados são sólidos, uma verdadeira mina de ouro", disse Bennett.

Assim vai avançando o conhecimento da humanidade ("a natureza quando toma consciência de si mesma", como a definiu Friedrich Engels) sobre o conjunto de objetos materiais, as formas distintas de matéria, a que chamamos universo. Muito já se aprendeu. Muitas "verdades eternas" foram jogadas na lata do lixo. Muitas surpresas continuarão nos maravilhando.

 

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