ESTABILIDADE A BEM DO SERVIÇO PÚBLICO -- (04/05/2001)

 

A infame propaganda política desenvolvida contra o servidor público para extinguir a estabilidade na década passada levou grande parte da população a acreditar que o funcionário estável não tem obrigação de trabalhar e a concordar que o instituto fosse ruim. A verdade, todavia, historicamente se tem mostrado claramente bem outra. O que está por trás de tanto empenho para acabar com a estabilidade e com o concurso público?

No período imperial, como era de se esperar, não havia estabilidade no serviço público. A permanência ou não do servidor dependia exclusivamente da vontade do imperador. Com a proclamação da República, diante dos males advindos de tal sistema, o servidor passou a ser demissível somente por decisão judicial. Todavia, em 1893, certamente pelos mais escusos interesses políticos, acabou-se a estabilidade. Em 1915, criou-se a estabilidade condicionada a dez anos de exercício do cargo público, e, em 1934, o servidor passou a adquirir a estabilidade em dois anos. Já em 1964, com o início da fase mais obscura de nossa história republicana, cuja imundície se deixou transparecer a posteriori através de uma ou outra prova sobrevivente, acabaram com a estabilidade “para demitir os adversários do regime”. Em 1988, visando ao combate à grave corrupção decorrente dessa liberdade administrativa sobre os servidores, os nossos constituintes restabeleceram a estabilidade aos dois anos (CF/88, art. 41), estabelecendo a exigência do concurso público (art. 37, II), a forte arma contra o nepotismo. Entretanto, ainda se deixou aberta uma porta para o protecionismo, quando excetuou da exigência do concurso os “cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração” (idem). (Todas as datas aqui mencionadas constam da Revista Veja de 16/04/97).

Todavia, os nefastos interesses políticos supervenientes trouxeram a eclosão de uma guerra contra a estabilidade e o concurso público. Primeiramente, um chamado “Emendão” acabaria de vez com a estabilidade. O autor da idéia foi infeliz. Retomada a batalha contra o serviço público, transformando o funcionário público no bode expiatório dos pecados capitais dos que controlam os cofres públicos, novamente se tentou extinguir o concurso, e a estabilidade foi tão perseguida, que não foi eliminada de vez, porém ficou bem arranhada, e foram forjados os mecanismo para que no futuro ela desapareça. Os principais argumentos foram esses: a) a estabilidade faz com que o servidor deixe de sentir necessidade de cumprir o seu dever; b) a estabilidade dificulta a contenção de despesas. Tais afirmações se desfazem ante a realidade que aqui será demonstrada.

Qual a razão de tão ferrenha luta contra a estabilidade e o concurso público? A comparação a seguir esclarece que a ESTABILIDADE NÃO É INDEMISSIBILIDADE, mas simples garantia contra perseguições políticas, garantia cuja supressão foi a meta principal de FHC, seu Ministro Bresser Pereira e outros.

Veja as semelhanças e diferenças entre as restrições ao servidor público e ao empregado da empresa privada.
 

DISPENSA POR JUSTA CAUSA CLT, 482

DEMISSÃO DO SERVIDOR PÚBLICO: RJU (original), art. 132;

a) ato de improbidade

IV - improbidade administrativa;

b) incontinência de conduta ou mau procedimento

V - incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição;

c) negociação por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço

XIII - participar de gerência ou administração de empresa privada, de sociedade civil, ou exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário (Art. 117, X);

d) condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena

I - crime contra a administração pública;

e) desídia no desempenho das respectivas funções

XIII - proceder de forma desidiosa (117, XV);

f) embriaguez habitual ou em serviço

* (sem equivalente)

g) violação de segredo da empresa

IX - Revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo;

h) ato de indisciplina ou de insubordinação

VI - insubordinação grave em serviço;

i) abandono de emprego

II - abandono do cargo;

j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado em serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa própria ou de outrem

VII - ofensa física, em serviço, a servidor ou a particulares, salvo em legítima defesa própria ou de outrem;

k) ato lesivo à honra ou boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em legítima defesa, própria ou de outrem

 ** (sem equivalente);

l) prática constante de jogos de azar

*** (sem equivalente);

Parágrafo único. ... a prática, devidamente comprovada em inquérito administrativo, de atos atentatórios contra a segurança nacional

**** (sem equivalente).


* Embora a embriaguez não esteja no rol das faltas justificadoras da perda do cargo público, ela pode, igualmente, desencadear esse efeito, se prejudicar o serviço público, uma vez que a desídia é suficiente para a demissão do servidor (Art. 117, XV).

** Uma vez que o funcionário público não tem um empregador, pois não é denominado empregado, um dispositivo correspondente à letra j é suficiente.

*** A prática de jogos de azar não foi incluída no Estatuto do Servidor Público, como não deveria estar entre as justas causas da CLT, visto que o jogo, desde que não venha a repercutir no emprego, faz parte da liberdade individual.

**** O nosso legislador estava bem a par das execráveis ações praticadas contra os que não apoiavam o regime, em nome da segurança nacional, durante a fase da qual o País acabara de sair. Talvez seja essa a razão de não ter incluído tal falta no rol das faltas graves, para que futuros aproveitadores não viessem a punir seus desafetos baseado no dispositivo.

A lei foi bem mais detalhada e até mais rigorosa na disciplina do funcionário público do que com o empregado de empresa privada: Enquanto o empregado não pode sofrer qualquer penalidade por ter mais de um emprego, isso no serviço público leva à perda do cargo (art. 132, XII). Enquanto o empregado pode ser despedido em virtude de concorrência desleal (CLT, 482, c), ao servidor público basta a direção de empresa (RJU, 132, XIII c/c 117 , X). Há uma série de outras proibições cuja desobediência leva à demissão.

Ademais, o rol de faltas graves constante dos artigos 132 e 117 contra o servidor público é muito maior do que o das justas causas do art. 482 da CLT.

Onde está a vantagem do servidor público? Onde entra a estabilidade? O que acontece com o servidor que deixar de cumprir as suas funções? Se proceder de forma desidiosa (Lei 8.112/90, art. 117, XV), a demissão será aplicada (art. 132, caput e inciso XIII).
Por que razão se luta tanto contra a estabilidade e o concurso público, uma vez que o servidor público não é indemissível?

O instituto da estabilidade apenas garante que o servidor não pode ser demitido sem razão como na empresa privada, o que é muito justo, mas extremamente doloroso para aqueles que, estando no poder e desejando colocar seus familiares e amigos nos órgãos públicos, esbarram nos dois duros obstáculos: a exigência do concurso público e a impossibilidade de desocupar lugares a seu bel-prazer, uma vez que não podem demitir funcionários que estão cumprindo seus deveres. Eis aí a razão de todo esse empenho para acabar com a estabilidade e com o concurso público. Eliminar a estabilidade e manter o concurso não satisfaria bem os anseios do Governo; pois os protegidos candidatos a ocupar os lugares dos demitidos teriam que provar sua capacidade, restando pouco frutífero o ato demissional.

São três as classes de pessoas que detestam o regime do serviço público:

1) quem fez vários concursos públicos e não conseguiu ser aprovado;

2) quem detém cargo político e gostaria de maior liberdade para contratação de seus parentes e amigos;

3) os que contam com o favorecimento dos poderosos.

Ivan Barbosa Rigolin considerou a forma constitucional de estabilizar o servidor concursado “após dois anos de efetivo exercício” o ... mais importante preceito constitucional a respeito dos servidores ... "Qualquer outra forma de estabilização de servidor há de ser tida como excepcional, extraordinária, e nessa condição apenas a Constituição pode oferecê-la, como o fez no art. 19 do ADCT - em dispositivo que sempre envergonhará o deputado e o senador Constituinte de 1988, verdadeira mácula injustificável, destituída do menor interesse público como se constitui, a qual premiou o mau servidor, ingresso pela porta dos fundos por proteção, apadrinhamento e motivação inconfessável, e que passou a ocupar o lugar de quem teria condição de habilitar-se em concurso." (RIGOLIN, Ivan Barbosa, Comentários ao Regime Único dos Servidores Públicos Civil, 3.ª Edição, 1994, pág. 67).

Podemos falar em “excesso de pessoal” ou falta de recurso para pagamento de pessoal?

Analise: A população cresce constantemente. Disso se deduz que os serviços públicos devam crescer proporcionalmente, vindo a haver, logicamente, falta e não excesso de pessoal. E, como o servidor não se multiplica por cissiparidade como os micróbios, apesar dos macróbios que sorrateiramente penetram pelas feridas administrativas, uma simples parada com as contratações ocasionaria o esvaziamento dos órgãos públicos em pouco tempo, já que os estáveis não são imortais, tornando necessário nomeações ao invés de demissões. E, pensando pelo lado econômico, mais ilógicos ficam os argumentos dos anti-servidores; pois só se diz que a economia do País está crescendo, e, inversamente, os vencimentos dos servidores público foram duramente reduzidos, desde que FHC se tornou ministro, e continuou definhando gradativamente com a sua presidência, na qual, ditatorialmente, teve até o apoio do STF para soterrar a lei que previa data-base para reajuste dos vencimentos dos servidores públicos todo mês de janeiro. Assim sendo, se antes havia dinheiro para pagamento de pessoal, agora deveria estar sobrando muito, e não faltando.

Além do argumento lógico supra, as circunstâncias fáticas colidem frontalmente com os elementos apresentados para justificar essa hipótese nova para demissão. Freqüentemente são abertos concursos em vários setores da Administração Pública. Não obstante essa carência de pessoal, perseveram os inimigos da estabilidade em afirmar que só com a possibilidade de demitir funcionários estáveis se consegue a normalização dos gastos públicos. Se fosse verdade, se houvesse excesso de funcionários, não haveria necessidade de mais concursos, bastando deixar de abri-los, e estaria resolvido o problema, sem demissão dos funcionários já existentes. No entanto, permanece este paradoxo: nomeiam-se funcionários e precisa-se demitir funcionários. É necessário demitir os que já têm experiência no serviço e ao mesmo tempo colocar pessoas inexperientes.

Podendo demitir com base no chamado “excesso de pessoal” e na pretensa necessidade do serviço público para contenção de despesas, e não existindo a necessidade de concurso público (onde se selecionam os melhores), imagine o leitor que bons serviços públicos estariam ao seu dispor! Acha que assim haveria algum milagre de surgir pessoas mais competentes? Aqueles que não conseguem entrar para o serviço público por serem eliminados no concurso seriam mais capazes do que os aprovados? Haverá meio mais claro de encontrar os mais aptos a não ser através de uma disputa democrática em que todos podem provar o que sabem? Não é necessário ser economista, sociólogo ou psicólogo ou ter qualquer habilidade especial para entender a que resultado se chegaríamos com essa reforma (demolição) administritativa se o projeto original fosse aprovado integralmente. Felizmente, foram introduzidas tantas restrições, que as intenções principais ficaram quase totalmente frustradas. Só que os ataques não pararam, e aos poucos o intentos neoliberais vêm se satisfazendo.

Insuficiência de desempenho – O dispositivo acrescido com a reforma constitucional para demissão por insuficiência de desempenho equivale a arrombar uma porta aberta. Se na lei 8.112, já havia a previsão de demissão de quem procede de forma desidiosa, o desempenho insuficiente está contido nessa disposição legal. A desídia, segundo doutrinadores, pode caracterizar-se por faltas injustificadas e mau desempenho das funções.

Criar um regime de empresa privada do serviço público, para facilitar a satisfação de interesses pessoais de políticos, é desastroso; pois a quem está no poder não importa o prejuízo resultante da substituição de um funcionário competente por um apadrinhado inepto, uma vez que o patrimônio em jogo não pertence àquele administrador. Os demitidos, com certeza, não serão os de desempenho insuficiente, mas os desafetos das autoridades administrativas.

O serviço público é diferente da empresa privada - Tornar estáveis os empregados de empresas privadas seria um problema.
O dono da empresa deve ter o direito de contratar e permanecer com os empregados que lhe agradarem, contanto que suporte os ônus dos direitos trabalhistas; pois ele assume o risco de seu empreendimento.
No serviço público, ao contrário, o administrador não é dono do Estado. Não é justo que tenha o direito de contratar quem quiser. Os resultados seriam graves, pois o empresário visa ao lucro e contratará pessoas que lhe pareçam benéficas para a empresa, e o administrador público, por não ser dono do serviço público, se lhe for dada essa liberdade, ser-lhe-á bem mais interessante dar emprego aos seus familiares e amigos, pois o Estado não é sua propriedade, e ele não hesitaria em sobrepor esses interesses particulares ao interesse público.
Havendo estabilidade e concurso público, só se nomeia quem é competente suficientemente para concorrer, e os vencedores podem permanecer no serviço público de forma menos vulnerável às perseguições políticas, das quais serão alvo fácil em não havendo estabilidade, e o prejuízo será para o patrimônio público.

O fim do regime jurídico único – Com o fim do regime jurídico único não foram satisfeitas todas as pretensões dos privatistas; porque a lei não eliminou o concurso e manteve requisitos para dispensa de servidores.

A Lei de responsabilidade fiscal – Não passa de mais uma investida rumo ao desmantelamento do serviço público. Note-se que se responsabiliza o administrador que ultrapassar o limite legal de despesas “com pessoal”. É um meio de justificar o aviltamento dos vencimentos funcionais.

Falso combate ao nepotismo – Uma lei foi aprovada proibindo a nomeação de parentes das autoridades. Se realmente o interesse fosse evitar o apadrinhamento, uma emenda constitucional eliminaria a possibilidade de nomear servidores sem concurso público; porém, em sentido oposto, se tem tentado acabar com esse concurso.

Proibir nomeação de parentes é apenas aproveitar ingenuidade pública: livrando-se do concurso (exceção constitucional, CF, art. 37, II), um detentor de autoridade emprega os parentes e amigos do outro, garantindo a reciprocidade. Mas, como muita gente não percebe isso, deu certa aparência de moralidade. Muita coisa deverá vir ainda por aí, a fim de eliminar esses elementos moralizadores: estabilidade e concurso público.

Ano 2003:
Passada a guerra contra o concurso e a estabilidade, surgiu a privatização da previdência como o nome de “Reforma da Previdência”.

Sobre esse ponto, veja PREVIDÊNCIA - HÁ MUITAS COISAS POR TRÁS

 

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