COMPARAÇÃO
Charanga e Chará

Lembrança da minha terra natal.

 

Charanga e Chará

 
Ouvindo, em 12/07/2009, pela Rádio Liberdade FM, uma música, que já gostava de ouvir na infância e adolescência, me veio à lembrança aqueles tempos e o modo como falávamos:
 

"Ô viola regatera, tá com isprito da muié, diacho!
Sai cachorro...

Num tivesse a carnaúba, num tinha chapéu de paia;
Se num tivesse a chapa, num tinha o jogo de maia;
Esses violero papudo comigo se atrapaia;
Se um dia eu perdê, sou capais de visti saia, sou capaz de visti saia

...pica a mula, cumpanhero veio... ...oh o pirigo!
Ô viola regatera, tá com isprito da muié, diacho!
Sai cachorro...


Se num tivesse o burro, num pricisava cangaia;
Se num tivesse o mar, também num tinha praia;
Muitos violero afamado, eu já vi tomano vaia;
Quando eu canto as minhas moda, é só parma que chaquaia,
é só parma que chaquaia.

...oh o pirigo!
Ô viola regatera, tá com isprito da muié, diacho!
Sai cachorro...

Se num tivesse o inseto, num tinha o bicho lacraia;
O home que num tem barba, num pricisa de navaia;
Eu junto com meu parcero, quando canta nóis num faia;
ganhemo de presente uma bunita medaia,
uma bunita medaia.

...vai falano dizoito língua aí, ó...
...oh o pirigo!
Ô viola regatera, tá com isprito da Gerarda, diacho!
Sai cachorro...

Eu quiria cunhecê semente da samambaia;
Tem gente por aí me chamano de macaia;
Eu desejo cunhecê a cara desse canaia;
Deve sê um vagabundo, com certeza num trabaia,
com certeza num trabaia.

 

LINGUAGEM CAIPIRA

 

"Ô viola regatera, tá com isprito da muié, diacho!" -   Essa frase já diz uma porção de coisas sobre as regras da nossa linguagem interior.

1 - O caipira elimina quase sempre o "i" de ditongos decrescentes: regatera, violero, parcero, cumpanhero, etc.    Só não o faz quando o ditongo é seguido de vogal, formando hiato: samambaia, lacraia... 

2 - O "e" quase sempre é substituído pelo "i" nas sílabas átonas: isprito, pirigo, pricisava, dizoito, quiria,  cunhecê.

3 - O "lh" é sempre substituído por "i": muié, paia, atrapaia, navaia, cangaia, chaquaia, veio, medaia, canaia, trabaia,

4 -  Essa linguagem simplificada rejeita também palavras proparoxítonas: "espírito" vira "isprito", assim como xícara vira "xicra", chácara vira "chacra",

5 - "Diacho" é uma variação de "Diabo".  Como em geral os sertanejos são muito supersticiosos, acreditam que dizer "diabo" traz má sorte, a maioria deles usam essa variação,  quase sempre sem saberem que o nome se refere ao "rabudo chifrudo tentador".

6 - O verbo estar perdeu a primeira sílaba: "tá" em vez de "está".

 

"capais" - Enquanto o "i" é eliminado de ditongos decrescentes (regatera, violero, parcero, cumpanhero", ele sempre é adicionado em palavras terminadas em "az", "ás", "és", "ós", "us", passando a ser "ais", "éis", "óis", "uis" respectivamente: "nóis".

 

"Esses violero papudo comigo se atrapaia" -  O matuto quase nao usa o plural.   Pode-se ver aí que a única palavra que geralmente ele pluraliza é o pronome, e o resto fica no singular: "eu canto as minhas moda"; "quando canta nóis num faia"

 

"...pica a mula, cumpanhero veio... ...oh o pirigo!" -  Essa substituição do "o" pelo "u" (cumpanhero) e do "e" pelo "i"  (pirigo, bunita) é tão influente, que, mesmo nos meios mais cultos o "e" e o "o" vêm desaparecendo da pronúncia de muitas palavras.   Hoje, em geral já se fala "minino" quando se lê "menino", e a palavra que no século XIX era grafada "logar" passou a ser "lugar" quando a pronúncia do "u" substituindo o "o" se generalizou.     Da mesma forma que "menino", a palavra "perigo", do latim "periculum" já está sendo pronunciada "pirigo" quase por todas as partes do país, já não sendo uma exclusiva pronúncia caipira.

"Picá a mula" significa sair rápido, como alguém que pula em cima da mula, mete a espora e a tala, saindo em disparada.

 

"O home que num tem barba" -  A terminação "mem" átona foi totalmente eliminada, "substituída por "me".   E a antiga palavra "non", que em português evoluiu para "não", lá é "num".

 

"é só parma que chaquaia" - Lá na roça o "l" é sempre substituído pelo "r" quando seguido de consoante: "Gerarda"

 

"eu já vi tomano vaia" -  no interior sempre eliminamos o "d" de terminações como "ando", "endo", "indo", substituindo respectivamente por "ano", "eno", "ino":  "falano", "chamano".  

 

"Já ganhemo de presente" -  O povo interiorano sempre substitui a desinência "amos" dos verbos da primeira conjugação na primeira pessoa do plural por "emo" -

 

"Eu quiria cunhecê"  - O "r" do final das palavras também desaparece sempre: visti, sê...

 

"OUTRA MÚSICA DA MESMA DUPLA: "SAI CACHORRO"

Arriei meu burro preto redumão cheio de farda,
Fui passiá no Mato Grosso, tropelei a onça parda,
Cão piloto ia latino do lado da retaguarda,
Caprichei na pontaria, dei um tiro de ispingarda,
Só de gosto eu dei um grito: Sai cachorro!
Tá com isprito da Gerarda?

Namorei uma criola por nome de Salomé,
A mãe dela era uma onça, seu pai era um cascavé,
Perguntei se eles quiria, respondero nóis num qué,
Nisso, mano, um vira-lata veio me mordê no pé,
Só de susto eu dei um grito: Sai cachorro!
Tá com isprito de muié?

Eu fiz uma briga loca por causa da Esmerarda,
Dei um tombo num valente, honrei o nome de guarda,
Troquei bala com o inimigo, distança de pocas jarda,
Nisso, mano, um pulicial quase me rasgô a farda,
Só de susto eu dei um grito: Sai cachorro!
Tá com isprito da Gerarda?

Certos cara cabiludo, sem chapéu e sem boné,
Ninguém sabe com certeza se é home ou se num é,
Como pode chamá Juca, também pode sê Isabé,
Um veio pro meu lado, disse moço eu chamo Zé,
Só de susto eu dei um grito: Sai cachorro!
Tá com isprito de muié? Tá com isprito de muié?"


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