Brasileiro secretário da OEA para
direitos humanos é demitido às vésperas de relatório sobre milícias e ataques a
minorias no Brasil
Brasileiro Paulo Abrão foi destituído depois de ser reeleito por
unanimidade como secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) - OEA
Brasileiro Paulo Abrão foi destituído depois de ser reeleito por unanimidade
como secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
Ricardo Senra
Da BBC Brasil, em Londres
28/08/2020 09h03
Em um racha sem precedentes na história da Organização dos Estados Americanos
(OEA), o brasileiro Paulo Abrão foi destituído depois de ser reeleito por
unanimidade como secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH).
A medida inédita, que veio à publico nesta semana, surge sob intensa polarização
na organização ? e às vésperas da divulgação de um
relatório extraordinário sobre violência policial, atuação de milícias, ataques
a minorias e retrocessos democráticos no Brasil.
O texto, segundo a BBC News Brasil apurou, identificaria "deterioração,
retrocessos e graves violações de direitos humanos" no país.
A investigação abrange os dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro,
cobrindo denúncias desde novembro de 2018, quando membros da comissão visitaram
o país, até a data de publicação, prevista para fim de setembro de 2020.
Procurados pela reportagem, nem a OEA, nem o Itamaraty quiseram comentar a
suposta relação entre o afastamento e as críticas da comissão ao governo
brasileiro.
Críticas
Dados públicos da comissão mostram que, desde a posse de Bolsonaro, o Brasil foi
alvo de mais de 45 críticas públicas, petições e recomendações, além do
relatório especial em fase de finalização.
Apesar de duros embates com gestões anteriores (Dilma Rousseff chegou a anunciar
a saída da comissão após críticas à usina de Belo Monte), nunca na história da
CIDH o Brasil foi objeto de tantos chamados.
Apesar de ligada à estrutura da OEA, a comissão tem prerrogativas de total
independência e autonomia, segundo seu estatuto.
Para autoridades com acesso a detalhes do processo, a destituição de Paulo Abrão
seria fruto de pressão vinda do Brasil e de outros Estados descontentes com
análises negativas sobre violações a direitos humanos.
Já segundo o secretário-geral da OEA e autor do veto ao brasileiro, o uruguaio
Luis Almagro, o gesto seria resultado da "existência de dezenas de denúncias de
caráter funcional" contra a sua gestão.
Expansão
O brasileiro esteve por trás da criação de um plano estratégico responsável pela
expansão da atuação da comissão no continente até 2021 e por uma ampla
reestruturação administrativa - o que despertou crises internas no órgão e
queixas de supostos abusos trabalhistas contra ex-funcionários, o que Abrão e o
comissariado negam.
Em meio à guerra de versões, a BBC News Brasil ouviu uma série de autoridades
próximas ao caso, incluindo membros do gabinete de Almagro, comissários e
membros do alto escalão da comissão, diplomatas e políticos latino-americanos e
ex-funcionários da CIDH, que pela primeira vez falaram publicamente sobre as
denúncias.
Os bastidores do caso expõem um complexo emaranhado de conflitos de interesses
em diferentes níveis - desde embates políticos entre embaixadores, presidentes e
comissários até desavenças no cotidiano do amplo escritório da comissão em
Washington, nos EUA.
O que aconteceu
No cargo desde agosto de 2016, Abrão é descrito como um dos principais
especialistas em direitos humanos no continente. PHD em direito e ex-professor
em universidades no Brasil e na Espanha, ele foi secretário Nacional de Justiça,
chefe do Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos do Mercosul,
presidente a Comissão da Anistia, do Ministério da Justiça, e presidente do
Comitê Nacional para os Refugiados e do Comitê Nacional contra o Tráfico de
Pessoas no Brasil, entre outros cargos.
Em janeiro de 2020, ele foi reconduzido com apoio de todos os sete comissários
da CIDH para mais quatro anos à frente do órgão, criado em 1959 anos para
monitorar e combater abusos contra cidadãos nas Américas.
Mas no último dia 15, data em que o contrato de Abrão deveria ser renovado, o
secretário-geral da OEA, Luis Almagro, surpreendeu os membros da comissão ao
anunciar que a gestão do brasileiro não seria prorrogada.
Almagro, reeleito recentemente ao posto com forte apoio do Brasil, da Colômbia e
dos Estados Unidos, justificou a decisão de última hora como fruto da "seriedade
e gravidade" de reclamações de funcionários sobre a gestão de Abrão.
Entrevistados pela BBC News Brasil em condição de anonimato, ex-empregados dizem
ter sido vítimas e testemunhado abusos trabalhistas como o suposto privilégio de
colegas em processos seletivos, perseguição de funcionários anteriores à gestão
do brasileiro e retaliação contra funcionários que discordassem das decisões de
Abrão - o que ele e os comissários negam veementemente.
As queixas são questionadas por colegas e observadores externos que apontam, por
exemplo, que todos os concursos da comissão passam por três colegiados e pela
revisão e aprovação final do próprio Almagro.
Recusa e confusão
Em outro aspecto inédito do caso, a polêmica decisão do chefe da OEA foi
recusada pela comissão.
"Para a Comissão, Paulo Abrão segue como Secretário-Executivo", disse à BBC News
Brasil a advogada chilena Antonia Urrejola, vice-presidente da CIDH. Para
efeitos formais, o grupo nomeou a colombiana Claudia Pulido,
secretária-executiva adjunta da comissão, como substituta interina do
brasileiro.
Almagro reagiu publicamente à resistência, afirmando em nota que a comissão
interrompeu o diálogo com a OEA "unilateralmente".
"É totalmente antiético e repreensível tentar gerar confusão a respeito do que
constitui a responsabilidade funcional individual de um ou mais funcionários e o
que constitui a autonomia da CIDH", afirmou o secretário-geral, subindo o tom na
disputa interna.
Reação internacional
A postura inédita de Almagro foi o estopim para uma onda de críticas vindo de
organismos multilaterais como a ONU e a Unesco, países como México e Argentina,
organizações globais de direitos humanos, ONGs e lideres políticos de diferentes
nacionalidades.
Eles classificam o veto como um "golpe" e uma interferência na autonomia da
comissão. Para estes críticos, a derrubada do brasileiro supostamente fere o
estatuto da Comissão e poderia colocar em xeque a fiscalização de torturas,
mortes políticas, ataques racistas e abusos contra minorias em mais de 30
países.
O autor de uma das denúncias, no entanto, descreve um "ambiente de medo",
"assédios", "perseguições" e "violações", na Comissão.
"Nenhum órgão de direitos humanos deveria ser caraterizado por um perfil
sistemático de abusos. Paulo está sendo colocado como vítima, quando na verdade
foi ele quem violou os direitos das pessoas", disse.
Questionado, o empregado disse não ter provas materiais sobre as acusações.
À reportagem, a vice-presidente da CIDH endossou suspeitas de motivação política
no processo.
"No justo momento em que a comissão ganha relevência, publica uma série de
informes sobre países cumprindo um papel bastante crítico sobre governos de
diferentes vieses ideológico que ficaram bastante descontentes com as críticas,
acontece essa não-renovação de última hora. Obviamente entendemos que há
intenção política por trás, seja de Estados, seja pelo secretário-geral, basta
ver o contexto", disse Urrejola.
Para a comissária, ex-relatora sobre Brasil na Comissão, "preocupa que a decisão
desrespeite o principio de inocência que merece qualquer pessoa, porque não
sabemos nem sequer quem são os acusados ou quais são as investigações, ou mesmo
se há investigações formais que envolvam Paulo Abrão".
"Com isso, não quero dizer que não se investiguem as queixas ou denúncias",
ressaltou a chilena. "É essencial que as investiguem com profundidade. E este é
o ponto: a falta de transparência denota uma utilização política dos
denunciantes, o que parece injusto e contraditório por parte do
secretário-geral", diz.
Procurado pela reportagem, o gabinete de Almagro não comentou as críticas sobre
interesse político, mas disse que "o processo está em poder do inspetor-geral
responsável pela investigação".
"O trabalho do inspetor-geral, por sua própria natureza, é tecnicamente
independente e não sabemos que medidas ele pode já ter tomado no contexto da
investigação", continuou o gabinete.
Abrão, por sua vez, limitou-se a dizer que no momento não vai falar com a
imprensa.
Alertas sobre o Brasil
Sob a batuta do brasileiro, a Comissão foi responsável por duras críticas a
chacinas, perseguições, violações de direitos políticos e falhas na proteção de
grupos e pessoas em todo o continente.
Entre 2019 e 2020, segundo a BBC News Brasil apurou, o Brasil foi alvo de 45
críticas diretas da Comissão por meio de notas à imprensa e por canais oficiais
em redes sociais. Os temas vão desde assassinatos de mulheres, indígenas,
trabalhadores rurais e presos até o fechamento de unidades da defensoria pública
e muanças no Ibama.
No período, o Brasil foi alvo de pelo menos cinco medidas cautelares. Estas
ferramentas funcionam como uma espécie de reconhecimento internacional de falhas
de um país em proteger determinados grupos ou pessoas e incluem recomendações de
medidas necessárias para reverter injustiças.
Uma das medidas que mais teriam irritado o governo brasileiro foi editada em
2018, cobrando a proteção de Monica Benicio, viúva da vereadora Marielle Franco,
cujo assassinato envolveu policiais, milicianos e políticos, segundo o
Ministério Público e a Polícia.
Já o relatório extraordinário prestes a ser publicado sobre o Brasil deve tocar
em temas consideráveis sensíveis pelo palácio do Planalto, como vítimas da
ditadura militar, ataques à imprensa, atuação de milícias, impunidade policial e
impactos sobre comunidades do uso da base de Alcântara, fruto de negociações
entre Brasil e EUA.
Outros temas abordados, segundo documentos preliminares e pessoas e entidades
entrevistadas pela Comissão, seriam "gravíssimas violações" e retrocessos em
relação a quilombolas, indígenas, população carcerária, trabalhadores rurais,
mulheres, liberdade de expressão e funcionamento das instituições democráticas
no país.
O texto é resultado de visitas a Brasília, Minas Gerais, Pará, São Paulo,
Maranhão, Roraima, Bahia, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro em novembro de
2018. Trata-se da segunda visita in loco da comissão ao Brasil — a primeira
aconteceu entre novembro e dezembro de 1995.
Weintraub
Para uma autoridade ouvida pela reportagem, o suposto apoio do Brasil à queda de
Abrão também seria fruto de negociações para oferta de um posto importante na
OEA para Arthur Weintraub, ex-assessor especial da Presidência e irmão do
ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, indicado para um cargo de diretor no
Banco Mundial.
"Almagro derrubou Abrão como moeda de troca pelo apoio do Brasil e de outros
países a sua reeleição, em março, e porque o Brasil prefere ter um bolsonarista
ocupando um cargo importante a queimar um cartucho internacional com um defensor
de direitos humanos", avalia uma autoridade próxima ao caso em Washington, em
condição de anonimato.
Fontes no governo classificaram as acusações como "fantasia".
Em março, o Itamaraty divulgou nota registrando "com satisfação" a reeleição de
Almagro.
"A candidatura de Almagro foi apoiada pelo Brasil desde o início do governo do
presidente Jair Bolsonaro", dizia o texto.
Segundo fontes diplomáticas, a Colômbia, recém-condenada pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos por violar direitos políticos de um
ex-prefeito de Bogotá, e a Bolívia, onde a Comissão determinou a criação de um
grupo de investigação internacional para apurar massacres de indígenas, seriam,
junto ao Brasil e aos EUA, os principais lobistas da queda de Abrão.
Mas, enquanto alguns governos de vizinhos latino-americanos defendem o
brasileiro, o Itamaraty foi na contramão e informou à BBC News Brasil que "a
decisão (sobre o futuro de Abrão) é prerrogativa estrita do Secretário-Geral da
OEA".
Em seu comentário, o ministério de Relações Exteriores cita um artigo do
estatuto da Comissão que afirma que "o secretário executivo (Abrão) será
designado pelo secretário-geral da Organização (Almagro) em consulta com a
Comissão".
Mas fontes no alto escalão da OEA ouvidas pela reportagem dizem que a leitura do
governo brasileiro é equivocada e apontam outros dois artigos, que diferenciam
seleções de renovações de mandato e apontam que cabe "à maioria absoluta dos
membros da Comissão" decidir sobre impasses relacionados à interpretação do
estatuto - o que não teria ocorrido.
Itamaraty
O assunto foi objeto de um comunicado em tom "duro e pouco usual", na opinião de
diplomatas ouvidos pela reportagem, assinado pela alta comissária de direitos
humanos da ONU, Michelle Bachelet.
"O impasse atual sobre a renomeação de Abrão é uma situação negativa e que
ameaça minar a independência e eficiência comprovada da Comissão", disse a
chilena, que ressalta que "que o episódio também afeta a reputação da OEA".
Em abril do ano passado, o órgão foi alvo de uma carta assinada por Brasil,
Argentina, Chile, Colômbia e Paraguai que sugeria uma reforma para limitar sua
ação no continente.
"Estados gozam de uma razoável margem de autonomia para resolver sobre as formas
mais adequadas de assegurar direitos e garantias, como forma de dar vigor a seus
próprios processos democráticos", dizia o texto. "(Esta) margem deve ser
respeitada pelos órgãos do sistema americano".
Após a eleição de Alberto Fernández, a Argentina abandonaria o grupo que assina
a carta. Todos os países signatários eram alvo de críticas da Comissão.
Na nota enviada à reportagem, o Itamaraty fez menção indireta ao tema.
"Junto com outros países, o Brasil tem buscado, ademais, atuar para o
aperfeiçoamento constante da Comissão", diz o órgão.
Ainda segundo a nota enviada pelo Itamaraty, "o governo brasileiro tem mantido
diálogo institucional com a Secretaria Executiva, respeitando a autonomia e
independência da CIDH e suas competências estatutárias convencionais".
Acusações trabalhistas
A BBC News Brasil ouviu diversos ex-funcionários da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos que fazem parte do grupo que teria denunciado a gestão de Paulo
Abrão à direção da OEA.
As queixas aparecem em um relatório confidencial escrito pela ombudsperson da
OEA, Neida Pérez - cujo papel oficial é mediar confitos internos. Segundo a BBC
News Brasil apurou, o texto não traz denúncias individualizadas, não diz se elas
se converteram em investigações, nem especifica quem seriam os alvos das
queixas.
"Ele tirou minhas funções, tirou os funcionários que eu coordenava, me colocou
em um posto menor e não me deixava participar de reuniões importantes", disse um
dos ex-funcionários à reportagem.
"Comecei a ficar louco. Tinha ataques de pânico antes de ir ao escritório.
Estive nas mãos de um psiquiatra, que me recomenou internacão, mas eu não quis".
Segundo esta pessoa, Abrão tentaria coagir funcionários a favorecer sua gestão
em comparações com anteriores em informes oficiais. Ele também teria
supostamente privilegiado candidatos que não estariam aptos a funções em
detrimento de pessoas com mais tempo de casa.
A equipe de Abrão nega as acusações.
A reportagem também questionou o profissional sobre indícios ou provas das
acusações. "Não tenho (provas) materiais para provar nada. O que posso oferecer
a vocês é meu testemunho, e o testemunho de muitos outros e muitos outros."
Segundo um entrevistado, todas as denúncias encaminhadas por colegas à
ombudsperson se referem a "abusos profissionais, contratações irregulares e
concursos viciados".
"(Ele quer que) façam tudo o que ele quer, mesmo que haja mentiras, manipulação
e corrupção", disse o funcionário, classificando o brasileiro como um
"narcisista, apaixonado por si mesmo, e alguém que quer que as pessoas a seu
redor o obedeçam sem discussão."
Outro funcionário, que já trabalhava na comissão antes da chegada do brasileiro,
afirma ter sido preterido por colegas de Abrão.
"Havia humilhação pública, no sentido de rebaixar uma pessoa perante seus
colegas e companheiros por meio da retirada de funções ou através de tarefas
similares às realizadas por outros funcionários com cargos mais baixos", disse.
"Eu falei que não concordava e fui totalmente ignorado."
Questionado sobre a onda de apoio ao brasileiro, que inclui mais de 200
organizações, países e pessoas físicas, um denunciante classificou Abrão como
"esperto".
"Paulo é inteligente, astuto, sabe agradar. Ele se move bem com os comissários e
comissárias e dá visibilidade a eles. Ele não teve embates práticos, discussões,
ele age discretamente. E as outras pessoas têm medo do que ele vai fazer com a
carreira delas. A resposta externa de agora demonstra a força política que ele
tem."
A equipe de Paulo Abrão afirma que não foi notificada oficialmente sobre a
abertura oficial de nenhuma investigação contra ele ou membros de sua equipe.
Também diz, sem dar detalhes, que a reforma administrativa do órgão gerou
resistência e ressentimento por parte de alguns funcionários.
O órgão também nega que não tenha encaminhado reclamações formalmente, como
afirmou Almagro ao classificar "a falta de tramitação como um duro golpe na
credibilidade da Comissão".
"A Comissão renovou por unanimidade o mandato de Paulo em janeiro desse ano, em
uma reunião sem a presença dele", diz um comissário. "O secretário-geral teve de
janeiro até agora para nos consultar e fazer observações sobre a postura de
Paulo. Nada aconteceu. Tivemos várias reuniões com Almagro sobre diversos temas
e ele nunca, de maneira formal ou informal, mostrou objeções sobre a renovação
de Paulo."
Também não há informações oficiais sobre o status das queixas, nem sobre quantas
delas se refeririam a suspostos atos praticados pelo brasileiro e quantas se
aplicariam a eventuais omissões de Abrão em relação a condutas de terceiros.
<https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2020/08/28/brasileiro-secretario-da-oea-e-demitido-as-vesperas-de-relatorio-sobre-milicias-e-ataques-a-minorias-no-brasil.amp.htm>
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